Fim de sigilo de 100 anos? As decisões de Lula que poderão afetar Bolsonaro após posse
BRASIL
Fonte: G1 Foto: Alexandre Schneider/Getty Images
O presidente eleito, Luiz Inácio
Lula da Silva, já deixou claro que pretende derrubar com rapidez os sigilos de
cem anos que o governo de Jair Bolsonaro adotou sobre uma série de informações,
como o cartão de vacinação do presidente ou as vezes que seus filhos estiveram
no Palácio do Planalto.
"Eu vou ganhar as eleições,
e quando chegar dia primeiro de janeiro, eu vou pegar seu sigilo e vou botar o
povo brasileiro para saber por que você esconde tanta coisa. Afinal de contas,
se é bom, não precisa esconder", prometeu o petista, no debate do segundo
turno da TV Bandeirantes.
Além do fim desses sigilos,
outras decisões do próximo governo também poderão afetar a família Bolsonaro,
como a troca de comando da Polícia Federal e a escolha do novo Procurador-Geral
da República em setembro do próximo ano. O presidente enfrenta acusações de ter
interferido nessas instituições para evitar investigações contra si e seus
filhos.
Entenda melhor a seguir as
decisões que Lula tomará e como elas podem impactar o futuro ex-presidente.
Sigilo de cem anos
A imposição de sigilo de um século ocorreu em situações que ganharam destaque durante o governo Bolsonaro, como nesses quatro casos:
- O cartão de vacinação de Bolsonaro foi colocado em sigilo, em meio à pandemia de Covid-19 e no contexto de que o presidente questionava eficácia e segurança dos imunizantes;
- O governo determinou sigilo de cem anos sobre informações dos crachás de acesso ao Palácio do Planalto emitidos em nome dos filhos Carlos Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro;
- A Receita Federal impôs sigilo de cem anos no processo que descreve a ação do órgão para tentar confirmar uma tese da defesa do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, sobre a origem do caso das "rachadinhas";
- O Exército impôs sigilo de cem anos no processo que apurou a ida do general da ativa e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello a um ato no Rio de Janeiro com o presidente Jair Bolsonaro e apoiadores do governo.
As decisões de manter o tema em
sigilo são feitas em resposta a pedidos apresentados por meio da Lei de Acesso
à Informação (LAI), geralmente sob alegação de que documentos continham
informações pessoais.
Também há casos em que o governo
tentou manter a informação secreta e depois mudou de ideia — como os dados
sobre visitas ao Palácio do Planalto de pastores suspeitos de favorecer a
liberação de verbas do Ministério da Educação para prefeitos aliados.
O sigilo de no máximo cem anos,
decretado em resposta a pedidos de informação do governo, está previsto na lei
que acabou com o sigilo eterno de documentos oficiais — a Lei de Acesso à
Informação. Ela foi sancionada em 2011 pela então presidente Dilma Rousseff — e
foi assinada junto com a lei que criou a Comissão da Verdade.
No artigo 31, a lei prevê que
informações pessoais relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem
tenham acesso restrito pelo prazo de até cem anos.
Também está lá um trecho que
busca conter o uso dessa medida: o texto diz que a restrição de acesso de
"informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá
ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de
irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em
ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior
relevância".
Para o advogado Bruno Morassutti,
fundador da agência especializada em transparência Fiquem Sabendo, pessoas que
ocupam importantes cargos públicos, como a Presidência da República, não devem
ter o mesmo nível de proteção de sua privacidade que cidadãos comuns.
Dessa forma, ele avalia que o
governo Lula poderá sim revisar com facilidade os sigilos decretados pela
gestão Bolsonaro.
"O presidente poderia,
diante de alguns casos concretos, determinar a abertura das informações, já que
ele é o chefe do Poder Executivo e tem competência jurídica para fazer isso.
Ou, eventualmente, ele pode orientar o ministro da Transparência e os membros
da Comissão Mista de Reavaliação de Informações a revisar essas decisões de
acordo com critérios que ele estabelecesse", afirma.
A Comissão Mista de Reavaliação
de Informações (CMRI) é um órgão colegiado composto por nove ministérios: Casa
Civil, Justiça e Segurança Pública, Relações Exteriores, Defesa, Economia,
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Gabinete de Segurança Institucional
da Presidência da República, Advocacia-Geral da União e Controladoria-Geral da
União.
Além dessas ações, Morassutti
também diz que o governo pode alterar o decreto que regulamenta a LAI ou enviar
uma proposta de alteração da lei ao Congresso para que seja adotada uma nova
redação que impeça um uso inadequado do sigilo.
"A lei, interpretada da
forma correta, não permitiria esse tipo de sigilo. Acontece que ela foi
interpretada de uma forma que a torna muito restrita. É uma visão que não
interpreta a lei junto com o restante da legislação e com o que a Constituição
diz sobre acesso à informação pública", ressalta.
Na sua avaliação, o potencial de
impacto do fim desses sigilos vai depender do que for revelado.
No caso das visitas dos filhos do
presidente ao Palácio do Planalto, por exemplo, o advogado acredita que há um
interesse em saber se houve alguma atuação em encontros com ministros que
poderia ser enquadrada como advocacia administrativa, que consiste no crime de
patrocinar, direta ou indiretamente, interesse privado perante a administração
pública.
Os inquéritos contra Bolsonaro
Bolsonaro enfrenta acusações de
interferir na Polícia Federal, órgão que tem inquéritos abertos contra o
presidente e seus filhos. Uma dessas investigações apura acusações de
interferência levantadas pelo ex-ministro Sergio Moro em 2020, quando pediu
demissão do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Assim que assumir o cargo, em primeiro de janeiro de 2023, o petista poderá nomear um novo diretor-geral para a Polícia Federal. O novo chefe da instituição, por sua vez, deve escolher novos nomes para postos chaves, como as superintendências regionais.
Para o professor de direito penal
da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Davi Tangerino, a gestão petista não vai
promover uma "perseguição" à família Bolsonaro, tentando direcionar a
atuação da PF contra o antigo clã presidencial, mas deve dar autonomia para que
a polícia toque as investigações que julgar pertinentes.
Tangerino lembra que os governos
do PT garantiram independência a órgãos de investigação, algo que até expoentes
da operação Lava Jato já reconheceram, como o próprio Moro.
"É certo que o governo na
época tinha inúmeros defeitos, aqueles crimes gigantescos de corrupção que
aconteceram naquela época, mas foi fundamental a manutenção da Polícia Federal
para que fosse feito o bom trabalho, seja de bom grado ou por pressão da
sociedade, mas isso (a autonomia) foi mantido", disse o ex-juiz da Lava
Jato, ao deixar o governo Bolsonaro.
Atualmente, há quatro inquéritos
autorizados pelo STF em que o presidente é investigado pela Polícia Federal por
suspeitas de diferentes crimes:
- Sobre divulgação de notícias falsas sobre a vacina contra covid-19 (INQ 4888);
- Sobre vazamento de dados sigilosos sobre ataque ao TSE (INQ 4878);
- Inquérito das fake news, sobre ataques e notícias falsas contra ministros do STF (INQ 4781);
- Sobre interferência na Polícia Federal (INQ 4831).
Bolsonaro sem foro
Bolsonaro também enfrenta as acusações de crimes feitas pela CPI da Covid, que estão em apuração pela Procuradoria Geral da República (PGR).
No entanto, a partir do momento
em que deixar a Presidência da República, Bolsonaro perde o foro privilegiado e
passa a responder por suspeitas na Justiça Comum.
A Polícia Federal poderá
continuar as investigações sem autorização do Supremo. As apurações que estão
sendo feitas pela Procuradoria Geral da República passarão para a competência
de instâncias inferiores do Ministério Público. Os processos no TSE passam para
o TRE da região onde houve a suspeita.
Se o Ministério Público decidir
fazer uma denúncia contra Bolsonaro, ele será julgado por um juiz de primeira
instância.
Uma exceção a essa regra, porém, pode ocorrer no caso do inquérito das fake news, já que nesse caso pessoas sem foro privilegiado estão sendo investigadas no STF, suspeitas de ataques contra a própria Corte e o Estado Democrático de Direito.
Enquanto Bolsonaro perderá o foro
privilegiado, seus filhos Eduardo Bolsonaro (deputado federal) e Flávio
Bolsonaro (senador) continuam tendo foro especial no STF em casos de supostos
crimes relacionados aos seus mandatos. Eduardo Bolsonaro é alvo também do
inquérito das fake news.
Dessa forma, ambos podem ser
afetados por uma provável mudança no comando da PGR, que hoje é chefiada por
Augusto Aras, visto como um aliado do presidente. Seu mandato acaba em
setembro.
Quando Lula foi presidente entre
2003 e 2010, sempre escolheu como Procurador-Geral da República o primeiro de
uma lista tríplice elaborada pela Associação Nacional dos Procuradores da
República (ANPR). O petista inaugurou essa tradição, vista como determinante
para garantir a independência do Ministério Público Federal.
Dilma Rousseff manteve o
procedimento, enquanto Michel Temer nomeou a segunda pessoa da lista tríplice.
Já Aras foi nomeado por Bolsonaro sem ter sido selecionado para a lista da
categoria.
Lula não se comprometeu na
campanha a respeitar novamente a lista, mas Davi Tangerino acredita que ele
pode resgatar a tradição, já que a escolha de Aras acabou gerando um desgaste
grande para o Ministério Público Federal.
"Foi Lula quem começou (a
nomear o PGR pela lista tríplice). Por que mudar agora, justamente para
substituir um Procurador-Geral sobre quem sempre pesou a acusação de ser muito
dócil com quem o indicou? Eu acho que é um ônus que o Lula não precisa",
avalia o professor da FGV.
Flávio Bolsonaro, por sua vez, é
alvo de investigação por um suposto esquema de rachadinha (desvio de recursos)
em seu antigo gabinete de deputado estadual no Rio de Janeiro. Essa
investigação, porém, tramita na Justiça do Rio.
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